Ser Repórter é...

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sábado, 26 de junho de 2010

O que um ‘foca’ não faz por uma vaga no jornal...

Por Raphael Cortezão

Escrevo o ‘causo’ abaixo, que marcou a minha entrada no jornal Diário do Amazonas, entre novembro e dezembro de 2008, depois de ser ameaçado via Twitter pela guardiã dos repórteres oprimidos, ‘santa’ Mônica Figueiredo. A história reflete um pouco do que passamos no dia-a-dia para conseguir nossos empregos e, claro, nos mantermos nele.

Em novembro de 2008, fui convidado pela então subeditora de Cidades do Diário, Hélida Tavares, a fazer o famigerado teste para uma vaga que seria aberta no mês seguinte na editoria. Fiquei contente e ao mesmo tempo preocupado, pois já tinha ouvido falar dos ‘testes’ no Diário durante a faculdade. Mas fui.

No dia e hora marcados, lá estava eu na redação do jornal com meu bloquinho, gravador e óculos escuros de sempre. Eis que surge a pauta que me daria (ou não) a bendita vaga no jornal. “Eu quero que você vá ao Centro para traçar um perfil dos mendigos e moradores de rua que dormem naquelas praças e calçadas de lá. De onde eles vêm, quem são...”. Pronto. Fiquei atônito, sem saber como iria fazer aquilo, mas como bom orgulhoso que sou, fiz cara de “ah, moleza” e fui para o Centro com o fotógrafo Evandro Seixas.

Comecei a percorrer as praças e literalmente a acordar os mendigos que encontrava. Para me nivelar a eles, me sentava no chão, perguntava tudo baixinho, sem gravar nada, e o Evandro fotografando tudo de longe. Tomei alguns ‘chega pra lá’ de alguns moradores de rua que não estavam de bom-humor naquele dia (quem estaria?), mas já no terceiro mendigo entrevistado, achei que estava indo bem. Ledo engano.

Eis que, na praça da Matriz, vi um senhor deitado no alto das escadarias, que aparentava ter aproximadamente 70 anos. Minha intuição me dizia para tentar ouvir a história daquela pessoa, que trazia no rosto e nas vestes marcas profundas de sofrimento. Fiquei ‘por ali’, e o homem acordou. Seu nome era Carlos Gomes (não esqueci...), tinha 51 anos e, pasmem, não estava bêbado.

Me contou, tranquilo, que veio de Boa Vista (RR) depois de uma briga com a ex-mulher, não conseguiu emprego e passou a dormir na praça da Matriz há 16 anos. Seu trabalho era vender latinhas metálicas para empresas de reciclagem. Até aí, ele sentado, contando a história, eu ouvindo e anotando tudo.

O fotógrafo Evandro Seixas me olhava preocupado e eu não entendia. Quando entendi, já era tarde. Seu Carlos estava de costas para o sol, o que impedia Evandro de fotografá-lo. Claro que ele usou o flash, mas o mendigo não gostou nem um pouco, se levantou rapidamente e começou a arremeter socos e pontapés loucamente na direção da câmera do Evandro, que se afastou e me deixou lá sozinho, branco de medo, foca, sem saber o que fazer. Seu Carlos gritava: “Vocês não vão ganhar dinheiro às minhas custas! Morro de fome todo dia e vou pagar o almoço de vocês com a minha imagem?!”.

Na hora me ocorreu que ele deveria estar com fome. Calmamente, propus a ele que, se me contasse sua história e permitisse que fizéssemos foto à vontade, pagaria o almoço dele no lugar que ele escolhesse. Falei a palavra mágica. Ele se acalmou, deixou o Evandro tirar a foto que quisesse, me contou o resto da história e depois disse: “quero comer naquela barraca ali”, apontando para uma barraquinha de comida baiana.

Voltei para a redação como se tivesse sido a pauta mais fácil da minha vida, escrevi a matéria e fui embora, rindo de mim mesmo e pensando em tudo o que um repórter ‘foca’ precisa fazer para conseguir sua primeira oportunidade. O jornal publicou a matéria em página inteira no dia 16 de novembro, com uma foto imensa do seu Carlos Gomes. Paguei o almoço do mendigo, paguei um mico fenomenal na praça da Matriz, mas fui contratado um mês depois no dia 10 de dezembro.

TODOS OS TEXTOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES, NÃO COINCIDINDO, NECESSARIAMENTE, COM O PONTO DE VISTA DA EQUPE VIDA DE REPÓRTER

3 comentários:

  1. Moral da história: os R$ 10 foram um baita investimento.rs

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  2. Muito boa a história. Parabéns pela garra e pela competência. Não é qualquer um que tem a coragem de ser jornalista, ainda mais sendo foca. Aconteceu há anos, mas acredito que minha parabenização ainda seja válida! ;)

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